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À medida que o milênio passado foi chegando ao fim, muitas crendices que nos acompanhavam há séculos, ressurgiram. O mundo iria acabar em fogo? O Juízo Final seria no ano 2000, ou em 1999? Outros textos alertavam justamente para o aparecimento de falsos profetas e promessas fantasiosas.
Quando o
feng-shui ganhou força, lá pelos anos 80, pensei que era sinal dessa síndrome de final de milênio. Rapidamente ele foi ganhando adeptos, dos mais óbvios, como a revista Capricho, até os mais surpreendentes, como as escolas de arquitetura.
O feng-shui traz conselhos muito valiosos, como o de não construir o quarto de dormir sobre a cozinha ( já que os pisos de madeira podem pegar fogo) ou o de não construir na curva de um rio ( numa enchente, os riscos são grandes). A essas recomendações, de origem prática e baseadas na experiência humana, foram, com o tempo, juntadas outras, de caráter escuso. Uma das mais curiosas, e das que fizeram mais sucesso entre nós, foi a colocação de espelhos na porta de entrada, ou no hall das residências. O objetivo era cruel: quando um convidado colocasse olho gordo, ou lançasse um mal olhado na sua casa, isso se voltaria contra ele. A ideologia por trás dessa idéia é a mais retrógrada possível, remetendo à Lei do Talião, olho por olho, dente por dente. Ora, muito antes o Cristianismo já tinha proposto uma postura mais humanista, ao sugerir que se desse a outra face para o agressor. Voltar ao espírito vingativo é um retrocesso da civilização, postura que muitos adotaram alegremente.
Mesmo cheio de contradições, o feng-shui prosperou. O que é grave, entretanto, foi ter recebido o aval de arquitetos e de professores, os quais deveriam defender a Arquitetura do obscurantismo que prevalece no texto.
Não bastasse esse constrangimento, agora chega até nós, a
geobiologia, que é, nada menos que a “
ciência que estuda a relação entre a Terra e os seres que a habitam”. É um tanto amplo, mas somos holistas, pois não? A geobiologia pretende estudar o modo como os ambientes influenciam diretamente a nossa saúde, uma relação que qualquer estudante de arquitetura percebe logo. Mas ela não aborda apenas, e nem principalmente, o campo de ação da natureza, pelo clima, o Sol e os ventos. A geobiologia vai atrás, como explicam os seus propagadores, da compreensão das “
influências que provêm do solo geradas por águas subterrâneas, linhas do campo magnético terrestre, formas arquitetônicas, decoração, qualidade do ar, da água, poluição sonora e eletromagnética, radiações cósmicas, materiais de construção, e uma série de outros itens são peças chaves na determinação de locais salubres ou enfermos”.
Nessa extensa e aberta série de “
outros itens”, imagino, cada um deve poder acrescentar alguma coisa do seu agrado, ou desagrado, algo que possa provocar a ira do
genius loci e prejudicar o seu projeto.
O curso que vai se realizar nesse final de semana, com o apoio do IAB, é mais especializado e trata da
Geometria Sagrada. Segundo Allan Pires, presidente do famoso e conceituado Instituto Brasileiro de Geobiologia, Biologia da Construção e Arte Zahori, “
todo mundo merece habitar espaços que potencializem a saúde e a qualidade de vida e qualquer pessoa interessada pode aprender a aplicar a Geometria Sagrada em seu cotidiano. Aliá-la à profissão, inserindo-a em projetos de arquitetura, decoração, design gráfico, artes plásticas e até terapias de cura, é melhor ainda, porque o resultado do trabalho será notado com mais eficiência, devido ao bem-estar gerado”.
Como se vê, com um pouco de dedicação e esperteza, qualquer um pode se meter a médico de espaços doentes.
Fico pensando no significado que teria se a Associação Médica apoiasse um curso de cirurgia mediúnica. Ela jamais o faria, não para desprezar outras possibilidades de tratamento do corpo humano, mas sim para reafirmar o tipo de prática que fez com que a Medicina fosse reconhecida e que deu o direito aos seus praticantes de obter da sociedade, uma reserva de mercado.
A tradição da arquitetura nada tem a ver com “
influências que provêm do solo geradas por águas subterrâneas”, exceto aquelas relacionadas com as ações do lençol freático.
Quando abrigamos sob a forma jurídica e institucional que a nossa profissão atingiu, técnicas e conhecimentos tão arbitrários quanto oportunistas, como são os que constituem essa extravagância chamada
geobiologia, que mistura tecnologias alternativas com mistificação, corremos o risco de sermos flagrados num generalismo superficial, como o foram os jornalistas.
A fala do ministro
Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, sobre a profissão de jornalista, contém um alerta oportuno: “
Na verdade, essa é uma decisão que vai repercutir, inclusive sobre outras profissões. Em verdade, a regra da profissão regulamentada é excepcional, no mundo todo e também no modelo brasileiro.”
Banalizar e deturpar os conhecimentos necessários ao arquiteto pode acarretar, no futuro, a substituição do diploma por uma varinha de condão.