18 de fev. de 2007

Social geografia

(Algumas observações a respeito do artigo " Sobre Bacias Hidrográficas como Unidade de Planejamento. Plano Diretor Participativo de Itaúna" de autoria do urbanista Rogério Palhares, publicado no post anterior)


Quando da elaboração do Plano Diretor de Itaúna, estranhei o exclusivo critério de divisão do território em bacias hidrográficas. Sei que essa classificação é tecnicamente defensável, um modo eficaz de descrever o espaço físico, mas acho difícil reconhecer a complexidade da cidade, coisa fundamental para o desenvolvimento das ações de planejamento, apenas pelas bacias que ela encampa.

Reconheço Itaúna quando se fala em Santanense, Morro do Engenho, Angu Seco, Brejo Alegre, Córrego do Soldado, Calambau... Porque será? Certamente porque, como disse Milton Santos, “o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente, por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos...” Ou seja, a forma do espaço não é só a forma geográfica, mas aquela que a sociedade constrói a partir das suas relações.

Com a evolução da mentalidade humana, o espaço físico perdeu a neutralidade da natureza original e ganhou sentidos diversos. Por outro lado, se a Ciência pode e deve repartir e fragmentar para melhor conhecer, gerando critérios importantes, não é prudente que as diferenças sociais e as aspirações comunitárias sejam simplificadas, apenas porque moramos sob a influência de um mesmo rio. Basta pensar no que ocorreria se considerássemos os povos da Amazônia, com todas as suas particularidades, simples e genericamente como “índios”. Guardadas as devidas proporções, é o que acontece quando nos consideram “habitantes das bacias”: transformam-nos em meros números de estatísticas.

Uma das conseqüências que reputo a essa organização impessoal, que divide uma sociedade humana em função dos acidentes geográficos, foi a baixíssima participação popular nas plenárias realizadas pela prefeitura itaunense, comprometendo o caráter participativo do Plano: parece que poucos se identificaram com as bacias e só se reconhecem como integrantes das comunidades.

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Unidades de Planejamento

No furor da elaboração dos Planos Diretores no Brasil, fato solenemente ignorado pela maioria dos arquitetos, o caso de Itaúna trouxe lições valiosas. Publico, a seguir, texto do arquiteto Rogério Palhares, dos mais respeitados urbanistas do estado, no qual esclarece e fundamenta a sua postura conceitual diante da tarefa. Ressalto que trata-se de um texto para comunicação com a população, o que demanda linguagem e abordagem adequadas ao leitor leigo. Entretanto, questiono no post seguinte, o princípio básico adotado para a análise da cidade.


Sobre Bacias Hidrográficas como Unidade de Planejamento
Plano Diretor Participativo de Itaúna

por Rogério Palhares*

Sempre que se vai planejar a ocupação de um território, de uma cidade, de um município, um primeiro procedimento usual consiste em dividir a área a ser estudada em partes, para facilitar a compreensão dos problemas em cada local, definir prioridades e organizar as futuras intervenções. Num segundo momento é necessário juntar essas partes para se tentar entender a relação entre elas, pois muitas vezes os problemas de um bairro, por exemplo, tem origens em outro, ou o problema a ser enfrentado se refere à um conjunto de bairros ou à cidade como um todo.

É por isso que falamos em unidades de planejamento, ou seja, divisões do território, cidade ou município, segundo as quais problemas e potenciais vão ser identificados (diagnóstico) e soluções vão ser dadas (propostas) de forma planejada (Plano Diretor). Estas unidades podem ser conjunto de bairros, regiões, distritos mas muitas vezes a forma de dividir o território pode dificultar o entendimento dos problemas, o relacionamento entre eles e a necessidade de soluções integradas que, ao atacar os problemas de forma conjunta, possam dar resultados melhores.

No caso do Plano Diretor de Itaúna, optou-se por trabalhar com bacias hidrográficas como a unidade de planejamento. Mas o que é uma bacia hidrográfica? Entende-se por bacia a área que recolhe a água de chuva para um determinado curso d´água, rio ou córrego, desde os pontos mais altos, ou cabeceiras, até o fundo do vale, onde corre o curso d´água. O que faz a água da chuva ir para essa bacia e não para a outra, vizinha, é a conformação do terreno, a topografia, que define divisores, ou linhas de topo, fazendo com que os escoamentos se dividam entre diferentes bacias.
No caso da área urbana de Itaúna (mostrar o mapa), foram identificadas quatro bacias: uma do Ribeirão da Várzea ou Joanica, outra do Sumidouro, outra do Ribeirão dos Capotos, todos afluentes do Rio São João, que por sua vez também tem uma bacia própria formada por terrenos que se inclinam na sua direção. Cada uma dessas bacias é delimitada por uma mudança brusca na direção da declividade do terreno que faz com que a água da chuva divida-se, indo para uma bacia ou para outra.
Do mesmo jeito, correm também independentes numa bacia e noutra os esgotos, a água servida, o entulho e o lixo deixados nos pontos mais altos e que depois vão ser carregados pela chuva para os pontos mais baixos, ou seja, vai tudo parar no córrego. Do ponto de vista ambiental, esses “divisores” de bacias, como são chamados, ajudam-nos a identificar os problemas de uma dada região de forma integrada e entender a relação de causa e efeito que existe entre eles.

Por exemplo, alguém desmatou uma área no alto da bacia e fez uma terraplanagem para construir uma casa. A chuva levou toda a terra para o córrego e provocou uma grande voçoroca no local. Toda vez que chove, vai mais terra para baixo, assoreando cada vez mais o córrego. No bairro em frente, na mesma bacia, falta rede de esgoto e coleta de lixo. Além de todo o esgoto que escorre para o córrego, o lixo acumulado nas ruas entope os bueiros e acaba provocando enchentes. A análise desses problemas e a implantação de obras para resolvê-los só faz sentido se for pensada para toda a bacia e se for priorizada de cima para baixo, evitando-se assim que obras sejam feitas em vão, sem conseguir dar cabo dos problemas.

Também o uso e a ocupação dos lotes planejados por bacia hidrográfica fazem mais sentido, pois a supressão da vegetação e a impermeabilização dos terrenos com pavimentação e com a construção de telhados aumenta a velocidade e a quantidade das águas pluviais, comprometendo as redes e aumentando o risco de enchentes.

É por isso que discutir os problemas dos bairros Padre Eustáquio, das Graças, Vila Vilaça, Freitas, Leonane e Várzea faz mais sentido quando entendemos que eles fazem parte da bacia do Ribeirão Joanica e que muitas das soluções para a melhoria da infra-estrutura urbana, das condições ambientais e da qualidade de vida dos moradores será melhor planejada se aquela bacia for pensada como um todo.


*Rogério Palhares
Arquiteto Urbanista
Prof. PUC/MG

14 de fev. de 2007

Ruas, prédios e pessoas: será uma Cidade?

Algumas observações sobre o artigo Ruas, prédios e pessoas, de Carlos Noronha, publicado no post anterior.

Antes de qualquer coisa, é preciso saudar o discurso de um arquiteto, ocupando espaço tão marcante na mídia impressa mais importante do estado, mais ainda quando se trata de um reconhecido estudioso da cidade. Carlos Noronha aviva a nossa combalida memória com fatos marcantes na história desta aviltada Belo Horizonte, dama exuberante, violentada por anos e anos no bordel urbanístico gerenciado pelos arquitetos, e que agora recebe, mais uma vez, uma máscara esteticizante.
Se mortuária ou rejuvenescedora, saberemos logo.

Percebi o artigo “Ruas, prédios e pessoas” sendo desenvolvido ao longo de três eixos de argumentação: informações históricas, críticas à gestão da cidade e uma comedida aprovação das ações atuais, empreendidas pela administração pública. No primeiro eixo, os personagens foram todos identificados, no segundo são obscuros, no terceiro eixo, os agentes estão subentendidos.
Entendo não ter sido necessário apontar os autores dos projetos dos quarteirões fechados da Praça Sete mas, porque não nomear os autores dos celebrados projetos da Praça da Estação, do Bulevar Arrudas, da Praça Raul Soares, do Museu de Artes e Ofícios?
Ainda no caso da Praça Sete, a crítica dura e em certos aspectos pertinente, exigiria maior clareza dos argumentos: o que Noronha quer dizer com intervenções de “má qualidade estética” ou que “não merecem ser tituladas de esculturas”? Igualmente, daria uma boa discussão a exigência da legislação de proteção ao patrimônio, quando “(...) proíbe artefatos que comprometam a visibilidade de bens culturais”: não é o que fazem as torres de luz da Praça da Estação, ofuscando os passantes e os usuários?
Por fim, se são quatro quarteirões e um escapa da execração, porquê não identificá-lo?. Aqui, Noronha perdeu a oportunidade de ampliar o senso crítico dessa população que “não questiona, pois do jeito que o espaço estava ‘qualquer coisa é lucro”.

Por outro lado, teria sido esclarecedor, ao menos sinalizar os períodos nos quais agiram os maus planejadores e identificar o limite entre a falta de ousadia e a incompetência, para que saibamos do que se está falando. É a superficialidade com que tratamos aberrações como o complexo da Lagoinha, celebrando o equacionamento dos seus equívocos, que permite a permanente violência perpetrada pelas obras viárias sobre a cidade. O exemplo atual, é o dos viadutos da Linha Verde, e em especial ao da Silviano Brandão com Cristiano Machado: mal proporcionado, sem noção de ritmo, cheio de elementos gratuitos e de afetação, sem falar da agressão à paisagem urbana, ao gerar espaços residuais de evidente feiúra e cuja apropriação tem futuro incerto.
Já que a Linha Verde é citada como melhoria, num contexto que discute a estética urbana, supõe-se que nesse aspecto, os planejadores de hoje são melhores que os de ontem. Serão?

Ao longo do artigo, Noronha aponta, com a elegância que o caracteriza, vários e graves problemas que assombram a nossa cidade, começando por uma síntese, sobre a qual parece que devemos nos calar:
“Belo Horizonte foi idealizada tendo como suporte três aspectos físicos que lhe dão caráter e identidade: a Serra do Curral, o traçado em malhas ortogonais e a canalização a céu aberto do Ribeirão Arrudas. Perdemos um pouco de todos esses elementos: o traçado já sofreu mudanças, a serra não é mais a mesma e a canalização a céu aberto está se transformando em via expressa”.
Observador e analista competente, Noronha prossegue:
“Da arquitetura do fim dos anos de 1890, pouco existe, mas duas edificações ainda marcam sua presença: a Imprensa Oficial e a Capela do Rosário. Infelizmente, o templo está em “situação humilhante”.
“Por cidade entende-se espaços em que há diversidade e uma comunhão entre os diversos segmentos sociais, muito diferente dos dois extremos atualmente exacerbados, que se equivalem em exclusão social: as favelas pouco urbanizadas e os condomínios fechados.”
“A retirada de tráfego de passagem da área central ainda é um sonho sem previsão. O que ocorre é que nunca testaram soluções mais ousadas para o tráfego no Centro. Falta de bons planejadores? Parece que sim”.
Sobre a Praça Rio Branco: “O espaço continua inadequado como praça. Os bancos foram postos no local mais impróprio para a permanência: na parte extrema, junto ao tráfego pesado que descarrega forte ruído e poluição sobre os usuários”.
E sobre o cotidiano: “(...)faltam espaços sombreados para permanência e apoio às penúrias da população, nas intermináveis filas de espera nos pontos de ônibus, escancarando a inadequação do serviço de transporte de massa”.

Entretanto, mesmo diante da gravidade das questões observadas, Carlos Noronha conclui suas observações com otimismo, o que acaba sendo conveniente à timidez dessa administração encastelada no poder por tempo excessivo. Talvez inadvertidamente, o texto envereda por um terreno perigoso, ao juntar uma lista de obras em execução na cidade, com as perspectivas das cidades desenvolvidas, ricas e bem administradas. Afirma Noronha:
“Os centros históricos de grandes metrópoles vão se consolidando como espaços de lazer, cultura, atividades comerciais e de serviços para toda a população. Como lugar para todos, os investimentos, parcerias e decisões não podem perder, nas suas conceituações, o atendimento às necessidades de seus reais usuários, aqueles cidadãos, de todas as idades, que por lá transitam e interagem cotidianamente”. Berlin? Barcelona? Beijing? Ainda estou na letra B... Queremos Belo Horizonte entre elas, mas já podemos colocá-la?
Ora, o último grande investimento privado no centro de Belo Horizonte foi, conforme o próprio texto, o Shopping Cidade, em 1991, dezesseis anos atrás, portanto. Os shoppings populares colocaram Ciudad Del Leste, no Paraguai, como modelo urbanístico e são a imagem da degradação e da barbárie arquitetônica, patrocinada pela Prefeitura e legitimada por seus arquitetos. Além disso, o centro continua sendo perigoso para quase todos, configurando-se como um lugar de segregação e violência: velhos são agredidos, adolescentes são repelidos e mulheres desrespeitadas.
É importante assinalar que “da década de 1990 até os anos recentes, ocorreram constantes investimentos públicos na requalificação dos espaços centrais”, embora também seja útil a informação complementar de que planos “audaciosos” como a revitalização da Lagoinha e da Rua da Bahia foram fracassos retumbantes. Aqui, ficamos carentes de uma avaliação crítica: quais os benefícios desses investimentos? Mais à frente, ao festejar a “revisão dos pisos dos passeios”, o problema da avaliação se agrava: os pisos do centro são, via de regra, esburacados, desnivelados e invariavelmente imundos, graças à genial calçada portuguesa, de difícil limpeza e conservação. Claro, ainda existe esperança, mas precisamos de algo mais sólido do que marketing e maquiagem.

O artigo é finalizado com uma repreensão ao arquiteto Alfredo Camarate quando o mesmo disse que:
“Podemos nos gabar de haver construído a melhor cidade do Brasil. Somos grandes, ousados, modernos!” Camarate estava certo: tivesse sido preservada, Belo Horizonte estaria entre as cidades mais belas do mundo. Para Noronha, “(...) poderíamos ser tudo isso, conservando as duas mais louváveis virtudes dos mineiros: a simplicidade e a despretensão".

Simplicidade e Despretensão: não foram estas, as qualidades que construíram Ouro Preto nem a Pampulha e não foi sob esse signo que se edificou a capital de Minas. Entretanto, tais armas se justificariam como ardil, fosse para obter, junto aos governos federal e estadual, as verbas necessárias à elaboração e execução de um plano verdadeiramente estruturador das nossas possibilidades futuras.

Os arquitetos, que nos primeiros anos da cidade, souberam engrandecê-la com seus projetos, precisam retomar o seu papel civilizador, fugindo da maldição implícita na frase de Oscar Wilde:
“Ensinamos as pessoas a se lembrarem, mas nunca as ensinamos a seguir em frente”.

Talvez aí, na valorização do esforço empreendido para prosseguir, esteja o mérito do otimismo de Carlos Noronha.
Pena que as ações públicas, privadas e profissionais sejam tão tímidas e erráticas.

11 de fev. de 2007

Ruas, prédios e pessoas

Belo Horizonte é a minha referência natural. Por coincidência, quando surgiu a idéia desse blog, no sábado 10/02, o jornal O Estado de Minas publicou um grande artigo sobre a cidade, de autoria do arquiteto Carlos Noronha: foi a deixa pra lançar o barco.

PUBLICADO NO CADERNO PENSAR, DO JORNAL "O ESTADO DE MINAS" DE 10/02/2007
Ruas, prédios e pessoas
Arquitetura e urbanismo do Centro de Belo Horizonte registram histórias de encontros e desencontros. Mapa da evolução da capital ainda pode ser percebido em edificações, lembranças e ruínas da cidade

Carlos Noronha

"Por que ruas tão largas
Por que ruas tão retas
Meu passo torto
foi regulado pelos becos tortos
de onde venho.
Não sei andar na vastidão simétrica
Implacável
Aqui tudo é exposto
Evidentemente
Cintilante. Aqui
Obrigam-me a nascer de novo, desarmado."

Ruas, de Carlos Drummond de Andrade (Boitempo, 1968)

Drummond nos apresenta em seu poema uma inquestionável comparação entre uma cidade planejada e as nossas tão queridas cidades históricas. Aqui, como nos diz o poeta, é lugar do novo homem, contemporâneo, moderno.
Para concretizar essa quase utopia no fim do século 19, liberdade e autonomia foram dadas ao seu planejador, Aarão Reis, por Afonso Pena, presidente de Minas, e, assim, fez-se possível a implantação de uma nova capital, denominada, até 1901, Cidade de Minas, com um plano moderno para os padrões brasileiros e da recém-criada República.
Belo Horizonte foi idealizada tendo como suporte três aspectos físicos que lhe dão caráter e identidade: a Serra do Curral, o traçado em malhas ortogonais e a canalização a céu aberto do Ribeirão Arrudas. Perdemos um pouco de todos esses elementos: o traçado já sofreu mudanças, a serra não é mais a mesma e a canalização a céu aberto está se transformando em via expressa.
As perdas não são só fatos recentes. Já nas primeiras décadas, o Parque Municipal foi sendo mutilado, juntamente com as praças que existiriam em seus quatro cantos; na década de 1920, a imensidão da Praça Rio Branco perde o antigo Mercado Municipal e são criados quatro novos quarteirões, inclusive interrompendo o acesso direto a ela pela Rua Guaicurus, que hoje poderia ser uma melhor opção. O mesmo ocorreu com a Praça Afonso Arinos, que perde os trechos onde se situam o Automóvel Clube e o prédio da Receita Federal.
Da arquitetura do fim dos anos de 1890, pouco existe, mas duas edificações ainda marcam sua presença: a Imprensa Oficial e a Capela do Rosário. Infelizmente, o templo está em “situação humilhante”, pois o primeiro edifício concluído pela Comissão Construtora da Nova Capital (no Centro, antes mesmo da inauguração da cidade), foi obstruído com a montagem de dois “barracões” para aluguel comercial, onde outrora existiam jardins. Assim, ocorre sua exclusão espacial, e revela como segmentos formadores de opinião ainda (mal)tratam bens culturais simbólicos.
A área correspondente ao Centro da Cidade de Belo Horizonte, polarizada, hoje, pelas praças 7 de Setembro, Raul Soares, Rio Branco e Rui Barbosa, em conjunto com o Parque Municipal, representa uma síntese de toda a cidade. Por cidade entende-se espaços em que há diversidade e uma comunhão entre os diversos segmentos sociais, muito diferente dos dois extremos atualmente exacerbados, que se equivalem em exclusão social: as favelas pouco urbanizadas e os condomínios fechados.
No princípio, a Avenida Afonso Pena, talvez pela sua vastidão, ainda intimidava os usuários. A Rua da Bahia, mais estreita, com uma pequena subida entre Afonso Pena e Paraopeba (Augusto de Lima), era mais acolhedora, além de ser passagem para a Praça da Liberdade, talvez daí a sua centralidade. Sua primazia vai até a década 1910–1920. O edifício Park Royal, hoje Caixa Econômica Federal, foi a grande novidade no início dos anos de 1920, quase um minishopping.
Hoje, as atividades bancárias predominam nesses quarteirões, que impedem uma melhor fruição e permanência. A Rua da Bahia era “o mundo”, em apenas dois quarteirões, como nos fala Pedro Nava em suas memórias.
Mas outros espaços agregavam muito mais cidadãos: o antigo Mercado Municipal, na Praça 14 de Fevereiro (Rio Branco) e seu prolongamento, além da ferrovia, na demolida Praça Vaz de Melo (Lagoinha), bem como a região do Hotel Floresta, na subida da Contorno, local inicial da boemia.
Nessas primeiras décadas, algumas edificações, já demolidas, vão tornar-se referências: o prédio dos Correios, de 1906, onde hoje se localiza o Condomínio Sulacap-Sulamérica; o Teatro Municipal (1906), Bahia esquina de Goiás; o Palacete Guanabara, de 1911, na esquina de Espírito Santo com Afonso Pena; o Cine Avenida; o Grande Hotel, no local do Maleta; e outros palacetes comerciais. Todos com no máximo três pavimentos, pois a legislação urbana de 1901 era taxativa: quatro ou cinco pavimentos só em casos especiais, mais não se permitia.
Com a inauguração do Monumento ao Centenário da Independência – Pirulito (1922-1924) e a saturação dos dois quarteirões mais simbólicos da Rua da Bahia, a Avenida Afonso Pena, em seu trecho do Parque Municipal até a Praça Rio Branco, passa a dar suporte aos espaços dos encontros, das atividades e das festas urbanas.
Os anos de 1920, depois da 1ª Guerra Mundial, trazem uma dinâmica avassaladora. Inicia-se a era dos arranha-céus, com as construções do Banco Comércio e Indústria, na esquina de São Paulo com Caetés, e do Hotel Sul-Americano, na esquina de Caetés com Amazonas, ambos existentes.
O Viaduto de Santa Teresa (1926) e o Cine-Teatro Brasil (1930), projetados pelo escritório de Emílio Henrique Baumgart, causam impacto pela nova estética – ecletismo com elementos do art déco.
Prédios verticalizados para escritórios vão pontuar o Centro na década de 1930: o Edifício Ibaté, Rua São Paulo, 498 (hoje à venda); o Edifício Capixaba, na Rio de Janeiro, 430; o Edifício Guimarães, na Afonso Pena, 952; o Centro dos Chauffers, na Rua Acre; e a Feira de Amostras, projetada em 1933 por um dos maiores escritórios de arquitetura de Belo Horizonte, chefiado por Luiz Signorelli. É desse escritório também o prédio da Prefeitura Municipal, o Minas Tênis Clube, o Automóvel Clube; e ainda o conjunto arquitetônico do Grande Hotel de Araxá. Signorelli é, sem dúvida, o grande arquiteto da década de 1930, assim como foram Edgard Nascentes Coelho e Luiz Olivieri, nas primeiras décadas.

Coração da cidade
A fundação do curso de arquitetura e chegada de novos arquitetos à capital vão redesenhar o perfil do Centro de BH, do impacto da verticalização, em busca de soluções mais equilibradas
Carlos Noronha Renato Weil/EM – 19/1/07
No ano de 1930, inicia-se o curso de arquitetura em Belo Horizonte. Seu ensino ainda era ligado aos conceitos acadêmicos do fim do século 19. Suas primeiras turmas vão produzir, principalmente na década de 1940, grandes edificações protomodernas (uma estética de transição entre o ecletismo e o modernismo): o Acaiaca, de Luiz Pinto Coelho; o Edifício Thibau, Rua São Paulo, 401, de Hermínio Gauzzi; e o Edifício Andrade Campos, Rua da Bahia, 1.065, de Tarcísio Silva.
Depois da saída de Belo Horizonte do arquiteto Luiz Signorelli – um dos nomes mais significativos da arquitetura nos anos 1930 – para dirigir as obras em Araxá, o seu parceiro, arquiteto Raffaello Berti, conquista a clientela dele e passa a produzir grandes edifícios na área central, para o segmento mais conservador, que não adota a moderna arquitetura brasileira introduzida aqui, na Pampulha, por Oscar Niemeyer e Juscelino Kubitschek. São obras significativas, mas que não seguem as tipologias modernistas, como o Edifício Walmap, Rua Carijós, 244; o Edifício Residencial Teodoro, Rua dos Tupinambás esquina de Afonso Pena; o Edifício Indaiá, com frentes para a Avenida Bias Fortes e Rua Santa Catarina; o Edifício Alkasar, na esquina de Bahia com Carijós, e outros.
Arquitetos não-residentes em Belo Horizonte também projetam na década de 1940, na cidade, edifícios protomodernos, como o INSS, de Luiz Eduardo Pereira, na Avenida Amazonas esquina de Tupinambás; o Edifício Mariana, na Rua São Paulo esquina de Avenida Afonso Pena, de autoria de Mário dos Santos Maia; e o Conjunto Sulacap-Sulamérica, de Roberto Capello, considerado por pesquisadores como o de melhor implantação na área central. Lastimável foi a eliminação de seus jardins frontais, para construção de um anexo, em 1972, que o fez perder toda a sua singularidade.

Verticalização
Mas quem introduz os edifícios verticais modernos na cidade são dois arquitetos cariocas, renomados: Paulo Antunes Ribeiro, com o projeto de 1944 do Edifício Pedro Dutra, na Rua Espírito Santo, 500; e Álvaro Vital Brasil, com o projeto de 1946 para o Edifício do Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, na Praça 7 de Setembro, hoje Banco Real. Só na virada dos anos de 1940 para os de 1950 é que um aluno formado em arquitetura em BH vai projetar um edifício vertical seguindo os conceitos da moderna arquitetura brasileira: Raphael Hardy Filho, com o projeto da atual Secretaria do Tribunal de Justiça, na Rua Goiás, 229, que em seu hall exibe um belíssimo painel de Di Cavalcanti.
Formados em 1944 e 1945, respectivamente, os arquitetos Sylvio de Vasconcellos e Eduardo Mendes Guimarães Júnior vão polemizar na mídia com artigos em defesa da moderna arquitetura, muitas vezes sendo ferinos com as obras do passado. Deve-se lembrar que, naquele momento, havia uma querela, que intimidava alguns profissionais, envolvendo JK/Niemeyer e os conservadores seguidores de dom Cabral, arcebispo de BH, em relação às obras edificadas na Pampulha e em especial sobre a Igreja de São Francisco de Assis. Em um capítulo do livro de Augusto de Lima Júnior, Arte religiosa, o “assessor” de dom Cabral pontuava: “O autor dessas construções foi conhecido arquiteto comunista e, por conseguinte, ateu, e como tal sem limitações nos seus caprichos (...) O arquiteto levantou a trapizonga que ninguém sabe o que significa”, e complementa: “Uma outra trapalhada é um fingimento de cruz com a travessa transformada em poleiro ou assento confortável de onde satã pode conversar calma e confortavelmente com o sr. Kubitschek. É a cruz do Kapeta...” Contrariando o autor, a Pampulha é hoje uma referência mundial para a arquitetura moderna. E Belo Horizonte tem o privilégio de ser um marco na trajetória de Niemeyer, um dos maiores arquitetos de todos os tempos.
Os arquitetos mineiros, com a repercussão da moderna arquitetura brasileira, vão edificar um conjunto de obras na área central da capital, propiciando o melhor momento da arquitetura vertical na cidade, desenvolvida nos anos de 1950 e 1960. São novas soluções em planta, em acabamentos e na estética. Além de representar a consolidação, na capital, da nova forma de morar: os edifícios de apartamentos, que se disseminam nos quarteirões entre a avenida Afonso Pena e a Rua dos Guajajaras.
A Avenida Afonso Pena, nos anos de 1960, passa pela segunda vez (a primeira foi ano de 1930) pela retirada da massa verde, dessa vez com o corte definitivo de sua densa vegetação, para ampliar as áreas de estacionamento e circulação de veículos. Logo a seguir, no fim da década, ocorre uma expansão do Centro na área hoje denominada Savassi, que se transforma, nos primeiros anos, em local sofisticado de comércio e serviços.
A partir dos anos de 1970, cai o número de edificações novas, principalmente com a abertura de outros espaços propícios à verticalização, em diversos vetores urbanos, com as regras impostas pela Lei de Uso e Ocupação do Solo de 1976.

Viadutos e túnel
Embora com um número pequeno de novas construções particulares, o Centro vai receber grandes investimentos: o terminal rodoviário e o complexo viário da Lagoinha (concluídos no início dos anos de 1970) com grandes viadutos, além do término do túnel da Lagoinha. Os viadutos serviram de chacotas, pois a solução adotada permitia cruzamentos de veículos na sua parte superior, daí a sua forma em xis . Os cruzamentos foram logo interceptados. A proposta implantada mostra, hoje, a inoperância do complexo, que será ainda mais sobrecarregado com o alargamento da Avenida Antônio Carlos, da nova via expressa, chamada Bulevar, e da Linha Verde. A retirada de tráfego de passagem da área central ainda é um sonho sem previsão. O que ocorre é que nunca testaram soluções mais ousadas para o tráfego no Centro. Falta de bons planejadores? Parece que sim.
Ainda na década de 1970, após longa espera, Belo Horizonte finalmente tem o seu grande teatro, o Palácio das Artes, e a prefeitura investe em melhorias urbanas, adotando o fechamento de quatro quarteirões na Praça 7 de Setembro. Com a conclusão da retificação da canalização a céu aberto do Ribeirão Arrudas, põe fim a um longo período de inundações que levaram as áreas ao longo de seu percurso a um processo de estagnação e deterioração.
Já nos anos de 1980, modificações físicas pontuam o eixo da Afonso Pena, com a volta do Pirulito, retirado nos anos de 1960, e a configuração da nova Praça Rio Branco, que desagradou a muitos. Criou-se uma elevação, desnecessária ao novo projeto. A aridez da solução e a não permissão de árvores e bancos criaram um “espaço morto”. Sem desmerecer a boa “estética” do monumento Liberdade em equilíbrio, de Mary Vieira, consagrada artista plástica, a intervenção configurou-se inadequada às características do local. As modificações ocorridas foram em vão. O espaço continua inadequado como praça. Os bancos foram postos no local mais impróprio para a permanência: na parte extrema, junto ao tráfego pesado que descarrega forte ruído e poluição sobre os usuários.
Da década de 1990 até os anos recentes, ocorrem constantes investimentos públicos na requalificação dos espaços centrais. Desde intervenções de melhorias no Parque Municipal à criação de centros culturais (Centro Cultural Belo Horizonte e Centro Cultural da UFMG); revisão dos pisos dos passeios; nova ambiência para a Rua dos Caetés e trecho da Rua Rio de Janeiro. Este último investimento é um bom começo, mas faltam espaços sombreados para permanência e apoio às penúrias da população, nas intermináveis filas de espera nos pontos de ônibus, escancarando a inadequação do serviço de transporte de massa.
A nova estética para os quarteirões fechados da Praça 7, apesar de necessária e de atender as reivindicações por melhorias de comerciantes e usuários, não é a mais adequada. As desnecessárias estruturas espaciais, além de má qualidade estética (não merecem ser tituladas de esculturas), contrariam a legislação de proteção ao patrimônio, que proíbe artefatos que comprometam a visibilidade de bens culturais. É o caso das “vigas e coberturas” desnecessárias, edificadas em três dos quatro quarteirões fechados, que impedem plena visibilidade das fachadas do Psiu (Rua dos Carijós), do Cine Brasil e Edifício Walmap (Rua dos Carijós), e do Edifício Capixaba (Rua Rio de Janeiro), um dos primeiros para escritórios construídos na cidade. São tantos objetos que se torna difícil a entrada de um carro do Corpo de Bombeiros, se necessário. É claro que a população não questiona, pois do jeito que o espaço estava “qualquer coisa é lucro”. Podiam – e deviam – ter uma melhor ambiência. Há de ressalvar que o piso e alguns bancos propiciam conforto.
A iniciativa privada vem, aos poucos, respondendo com grandes investimentos na região. A construção do Shopping Cidade representou uma oxigenação para a região, a partir de 1991. A parceria com o município permitiu a retirada de camelôs de vias centrais e a instalação de shopping populares, que estão dinamizando os espaços por eles impactados. A retirada de placas publicitárias abusivas permite a maior visibilidade do cenário urbano.

Lazer e cultura
A concretização do Museu de Artes e Ofícios e a nova Praça da Estação ganham destaque, sendo esta, sem dúvida, a melhor intervenção das muitas ocorridas. Novos investimentos na área cultural estão em fase de conclusão e planejamento: o Cine-Teatro Brasil, o ex-Cine Palladium e a antiga 104 Tecidos serão novos espaços de lazer e cultura. A prefeitura investe agora em projetos de melhorias na Praça Raul Soares e no entorno do Mercado Municipal, possibilitando maior fruição e segurança.
Os centros históricos de grandes metrópoles vão se consolidando como espaços de lazer, cultura, atividades comerciais e de serviços para toda a população. Como lugar para todos, os investimentos, parcerias e decisões não podem perder, nas suas conceituações, o atendimento às necessidades de seus reais usuários, aqueles cidadãos, de todas as idades, que por lá transitam e interagem cotidianamente.
Talvez a lembrança de um pequeno trecho de uma crônica de Alfredo Camarate, arquiteto e jornalista, na época da inauguração, ainda no século 19, falando sobre a nova capital e o gosto “exagerado” do ornamento nas construções possa servir de reflexão para os novos empreendimentos: “Podemos nos gabar de haver construído a melhor cidade do Brasil. Somos grandes, ousados, modernos! É verdade; mas poderíamos ser tudo isso, conservando as duas mais louváveis virtudes dos mineiros: a simplicidade e a despretensão".

Carlos Noronha é arquiteto urbanista e pesquisador da Fundação João Pinheiro