23 de mai. de 2009

Mais um papagaio empinado

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O Futuro das Pipas

Seria bom poder começar essa crônica assim: “ eu estava passando pela Pedreira Prado Lopes, quando...” e aí seguiria uma história feliz. Infelizmente, ninguém passa por lá. Na Pedreira só se vai por obrigação ou por falta de alternativa, seja você morador ou não.
Então, vou recomeçar: à procura das intervenções empreendidas pela Prefeitura, anunciadas como “Favela mais antiga de BH ganha nova cara”, cautelosamente cruzei o morro e, mesmo sem ter me aventurado a descer do carro, pude constatar a grande escala do trabalho e o imenso desafio: um desafio grande demais para ficar apenas nas mãos do estado.

Os objetivos das intervenções em curso são extensos; quase óbvios; quase difusos. E as ações não ocorrem em lugares específicos, mas de modo geral. Ou seja, não ocorrem no alto ou embaixo, no leste ou no oeste, no meio ou nas margens: ocorrem na favela, aqui e ali.

O discurso dos urbanistas é avesso a essas frescuras de hierarquia espacial, fruição visual e outras sofisticações do discurso arquitetônico. Quando se observa a lista dos objetivos (v. Portal da Prefeitura/Urbel/ Vila Viva) isso fica mais claro. São 7 objetivos. Um deles é Limpeza Urbana, com um sub-item, “ampliação da coleta de resíduos sólidos”. Um outro item é Reestruturação Urbanística, e um dos seus quatro sub-itens é “expansão das áreas de uso público e de convívio”. Isso poderia não dizer nada, pois não sei o desdobramento do discurso dentro do plano, mas se limpeza urbana é item e espaço público é sub-item, algo já começou mal.

Parei em frente a um canteiro de obras. Era um campo dividido em platôs, no qual meninos empinavam papagaios. Qual seria o futuro daquele espaço vazio, escancaradamente aberto, mais aberto ainda, pelo contraste com as ruínas palestínicas ao fundo? Os garotos, provavelmente pensavam no futuro das pipas e, sem saber, viviam aquele item perdido no meio da lista de objetivos da intervenção: as áreas de uso público e de convívio. Senti a fragilidade da poesia, diante das escavadeiras e das estatísticas: aqueles platôs tinham todo jeito de Plataforma para Alojamentos Coletivos, mas quem sabe do seu destino? Se os projetos tivessem sido publicados, poderíamos analisá-los melhor e até mesmo debatê-los. Planos desse tipo são importantes demais para serem resolvidos a portas fechadas.

Próximo ao sítio em questão, há uma construção resultante de ação anterior, cuja foto está estampada como se fosse algum tipo de atestado de sucesso, no site da Urbel. Trata-se de um conjunto de apartamentos ocupando o alto do morro. À primeira vista, chama a atenção, a densidade da implantação: não há áreas livres, pelo menos onde deveriam estar, voltadas para a paisagem. E nem da forma que deveriam ser, públicas. O modelo é inadequado também pelo telhado de grandes empenas, cujo potencial foi logo percebido pelos moradores, que mais uma vez impuseram a sua estúpida teoria construtiva.
Mas o erro seminal é a destinação do cume para uma meia dúzia de indivíduos, constituindo-se em mais uma das inúmeras oportunidades perdidas pelo poder público, por não se colocar em discussão, não só pelos moradores, mas também pela comunidade de arquitetos, espaços tão importantes, e mesmo históricos, como é a Pedreira.

Em empreendimentos mais recentes, como os da Vila São José, a Urbel projeta os edifícios mais parecidos com os da classe média, abandonando a meia água populista da Pedreira, em favor de modelos que aproximam falsamente as classes sociais. Este é mais um sintoma da indigência conceitual dominante, seja por descuido ou por impossibilidade. A pobreza na concepção dos espaços livres se apresenta mais uma vez, como uma marca, e agrava-se nas áreas privativas das unidades, que possuem 45 e 55 m2: para quem não tem sítio, não passa feriado na praia e não sabe freqüentar parques, deve ser desesperador.

Ao que tudo indica, a Prefeitura está perdida com relação aos modelos habitacionais que utiliza, não obstante a clara intenção de melhorar a vida da população carente. Talvez esteja na hora de mudar de estratégia. Ou de arquiteto. Ou ambas as coisas. O certo é que substituir as habitações sem qualificar suficientemente os espaços públicos, é empurrar os principais problemas das favelas para o futuro.



a realidade no alto do morro














a felicidade no site da Urbel

2 comentários:

Anônimo disse...

Mestre,

não sei o que é mais pertubador: os modelos propostos para nossa população carente ou reconhecer que as propostas surgem de nossos companheiros profissionais. Seria realmente nossa profissão uma disciplina SOCIAL. Talvez o capitalismo realmente tenha nos corrompido, e de tal forma que a realidade não nos interessa, a não ser que venhamos a ser exibidos nas capas ou paginas estilizadas de nossas vitrines. Onde esta a epopeia do nosso trabalho? nas salas de estar ou no jardim de inverno, será que nunca vai acontecer o despertar da razão, será que sempre vamos apresentar o espetáculo de marionetes, enfim mestre será que há esperança.

abraços.

ton

sérgio disse...

Realmente essas dúvidas são perturbadoras, ton... É como se fôssemos médicos e descobríssemos uma parte da categoria fazendo bruxaria....
Mas não acho que o Capitalismo seja o problema e talvez seja até a solução. Me parece que a oposição Capitalismo x Socialismo, acaba deixando de lado uma característica histórica do arquiteto que é a de ser um Humanista, ou seja, alguém interessado e envolvido com aprimoramento do homem.
Me parece que um ótimo recomeço seja a sua pergunta: "Onde está a epopéia do nosso trabalho?". Precisamos redescobrir...