20 de mai. de 2009

boas cercas fazem bons vizinhos

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Em artigo no jornal O Globo, o sociólogo Roberto da Matta lembra que as cidades americanas não tem muros nas casas e cita a observação de Alceu Amoroso Lima que o impressionou nos anos 60, de que mesmo dentro delas, os espaços são contínuos, não havendo “barreiras entre a sala de visitas, a sala de jantar e mesmo os quartos”. “Tudo é público”, conclui Alceu. Tal afirmação demonstra que a análise das organizações espaciais não é tarefa para diletantes e que ela vai além da verificação das aparências, pois as estratégias de definição de domínios não precisam excluir a sua integração.

A partir das experiências modernistas e em particular das propostas de Frank Lloyd Wright, os interiores das casas americanas tornam-se de fato mais abertos, refletindo melhor a vida familiar e a integração da mulher, antes confinada à cozinha e à lavanderia. Mas isto não implica no retorno aos conflitos decorrentes da indistinção entre o espaço íntimo dos quartos e o espaço social da sala. Uma análise ainda que superficial, de casas dos anos 50 e 60 nos Estados Unidos, mostra justamente a busca de espaços sociais cada vez mais integrados entre si e com a natureza, por um lado, e a busca de privacidade do setor íntimo, por outro. Ou seja, nem tudo é público.

Para abolir os muros, algumas premissas são consideradas, sendo a primeira delas, um grande afastamento das casas em relação à rua, criando uma eficiente área de transição entre o público e o privado. Outra premissa é a própria percepção da população sobre esses domínios, inclusive implicando na manutenção daqueles espaços em boas condições. Todos já vimos cenas dos americanos com seus cortadores de grama, aos domingos, enquanto para muitos de nós, se o espaço não está murado, é sinal de que nele se pode jogar lixo.

A compreensão mais apurada do papel que tem os níveis de privacidade numa sociedade, permite que eles sejam trabalhados com liberdade e criatividade, o que é válido tanto para a casa quanto para a cidade. Por isso, o debate sobre o fechamento das favelas reveste-se de uma importância especial, pois expõe diversos aspectos da nossa convivência.

Na polêmica sobre a construção de muros cercando as favelas do Rio de Janeiro, duas posições se destacam, sendo a de condenação, mais numerosa. Aliás, quase unânime. Timidamente, a outra posição sugere que poderia haver outros modos de resolver a situação.

Mas que situação é essa? Para o governo, trata-se de impedir o avanço das favelas sobre as matas. Para outros, o que se quer é segregar espacialmente uma população, constituindo um gueto. Para outros mais, a questão é mesmo proteger a população em geral, da ação dos bandidos. A necessidade de se explicitar "a situação", é primária, mas se faz necessária, pois o caso apresenta dificuldades já na fase de identificação dos problemas e das diversas instâncias afetadas e interessadas. Esse é o passo inicial de qualquer ação que envolva o construtivo, ou não, e isso qualquer estudante de arquitetura aprende logo.

Muitos comentaristas apontaram como principal problema, a questão da formação de um gueto, ou daquilo que um perito da ONU, Alvaro Mejia, chamou de "discriminação geográfica". Bem, a definição de um domínio no espaço, seja no espaço natural ou no das cidades, é uma ação própria do homem. Os domínios são definidos por limites, que vão desde os mais sutis aos mais óbvios. Podem se manifestar pelo olhar dos seus habitantes ou se concretizar num muro. Quando um não morador erra o caminho e entra numa favela como a Rocinha, no Rio, ou a Cabana, em Bhz, tem a imediata sensação de que está no lugar errado, vendo-se então tolhido no seu direito de circular livremente. Pergunto: tal sensação se dá por preconceito ou é realmente perigoso? A resposta é sabida, mas é preciso responder de novo a pergunta inicial para que se definam todos os que estão sendo “geograficamente discriminados” e a própria natureza da discriminação.

Na sua visita a Israel, o Papa Bento XVI fez uma afirmação interessante sobre o muro erguido em torno da Cisjordânia. Disse ele: “Ao nosso lado (...) há um lembrete cruel do impasse que parecem ter alcançado as relações entre israelenses e palestinos”. Ao colocar o muro como “símbolo do impasse entre Israel e os palestinos” e ao exortar “ambos os lados a romper a espiral de violência”, Bento não acusa ninguém, mas salienta a precariedade do Homem, apontando o caminho do diálogo. De modo correlato, será que a construção do muro no Rio, não vai apenas materializar uma situação de fato, de violência e segregação, de parte a parte?

Ainda assim, se poderia contestar a construção do muro pela possibilidade de que ele se constitua em elemento de provocação e de acirramento das animosidades. Para indicar o nosso grau de insensibilidade e mesmo de cinismo, e sinal de que algo precisa ser mesmo provocado, basta ver não só os índices de violência, mas também o romantismo carioca, resumido em outra observação de Roberto da Matta: “Rio de Janeiro, terra do carnaval, da praia e da mistura aberta”. Porque então tantas mortes, pergunto.












Talvez uma resposta esteja na nossa peculiar interpretação a respeito do que seja público, privado e sobre o sentido de propriedade. Um japonês que encontra um boné no chão, não o toma para si, simplesmente porque não é seu e o coloca num lugar visível para que o dono o encontre. No outro extremo, edifícios de Ipanema, originalmente construídos no alinhamento da calçada, criaram áreas de proteção, invadindo o passeio público. Isso é visto com certa naturalidade por muitos, tanto quanto proclamar a sorte de ter achado um boné. Daí a apropriar-se de um bem alheio pela oportunidade é um passo. Curiosamente, se aquele bem não é cobiçado por ninguém, fazemos vista grossa.

O impedimento de que todos nós freqüentemos os morros, cariocas ou não, é um exemplo dessa disfunção social. A comunidade das favelas, por conveniência ou por passividade, inibe o acesso dos demais habitantes da cidade a pontos de potencial interesse coletivo, seja pela paisagem, seja pela mata, por objetivos econômicos, ou por mera curiosidade. Mas como a maioria não deseja essa aventura, a sua impossibilidade é dada como irrelevante. Ao não considerarmos importante o direito de qualquer um subir o morro, que é colocado abaixo do direito do mico-leão-dourado ou da casuarina, na verdade colaboramos para a confusão reinante, de domínios instituídos pela força, de práticas que ocupam vazios não reivindicados.

Voltando a questão do muro, se o debate visa a busca de respostas, então devemos nos perguntar não só o porque de um muro, mas também especular sobre qual tipo de intervenção seria satisfatória. Se os problemas em pauta forem a proteção da mata, o aumento da segurança, a melhoria da acessibilidade para todos e o incremento na integração entre as comunidades faveladas e a sociedade, a minha proposta é a construção, não de um muro, mas de uma muralha. Uma muralha nos moldes da Muralha da China. Um elemento de proteção, de impedimento do uso da mata para fins escusos, mas também que proporcione uma experiência significativa, coisa que não aconteceria numa simples via ao nível do chão, como propuseram alguns.

Diferentes muros têm diferentes significados. Um muro puro e simples é quase sempre e em quase todas as circunstâncias, uma solução ruim. Por outro lado, se ampliarmos o seu papel e dermos a ele uma forma adequada, o muro pode exercer outras potencialidades, como a de assinalar, de modo positivo, um Lugar.

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