14 de abr. de 2009

Um arquiteto invisível?




















Dois Museus
Cheguei a Bilbao numa manhã chuvosa de 98. O Guggenheim havia sido inaugurado há poucos meses, recolocando a arquitetura no seu papel de acontecimento popular. Fui a pé ver o museu, que fica numa das margens do Nervion, seguindo pela Avenida Sabino Arana, perpendicular ao rio, ao longo da qual foram aparecendo as maravilhosas conchas transparentes do Norman Foster, que dão acesso ao metrô projetado por ele. Daí chega-se ao Parque Kasilda Iturrizar e... Olé! O edifício surge à meia distância, inconfundível. Foi uma experiência marcante, pois apesar do dia nublado, o exterior em titânio brilhava intensamente, como se recolhesse todos os fótons disponíveis, devolvendo-os em seguida, matizados. Naquele momento, se me dissessem que era uma escultura de gelo eu acreditaria, mas como bom mineiro, teria que conferir. Foi o que fiz.

O projeto de Gehry, além de atrair as atenções do mundo, estabeleceu novos parâmetros para a arquitetura naquele final de milênio, colocando de novo a atenção de todos sobre a expressão plástica, justo quando o Olimpo arquitetônico estava mergulhado em sofisticadas, necessárias, porém exageradas operações intelectuais e digitais. O Gug Bilbao é materialidade explícita.

Numa situação climática semelhante, em janeiro de 2009, desembarquei em Kanazawa. Foi uma chegada atribulada, pois esqueci no trem nada menos do que o notebook, espantosamente recuperado algumas horas depois, já com um novo antivírus instalado. Em Kanazawa, Sejima e Nishizawa haviam construído em 2004, o Museu de Arte Contemporânea do Século 21, um nome curioso, que mostra bem as intenções dos que o conceberam. O edifício está num contexto de grande diversidade, tendo como vizinhos, residências, prédios públicos, museus e outras instituições culturais, além da proximidade de um dos mais apreciados jardins do Japão, o Kenrokuen. O Castelo de Kanazawa está logo à frente. A vizinhança é de grande delicadeza, pela escala dos edifícios e pela serenidade das relações público/ privado. O museu, que explora a transparência em muitos sentidos, acaba por funcionar como um amálgama que integra os diversos lugares no seu campo de influência, conseguindo esse feito, diferentemente do Gug Bilbao, não pelos atributos visuais, mas pela postura: em Bilbao, os olhares se voltam para o museu, já em Kanazawa, o museu é de onde eles partem.

No Gug Bilbao, fui impelido a contornar o edifício para apreciá-lo, descobrindo e me surpreendendo com as variações da forma, de escala e dos materiais. Gehry exige o nosso envolvimento físico, nos conduzindo a um passeio espetacular pelo sítio, fazendo-nos percorrer uma passarela entre um espelho d’água e o rio, a passar sob um elevado e subir uma escadaria escultural que revela novas perspectivas do edifício e da cidade: nos deixa sobre a ponte, de onde se pode bisbilhotar os interiores do museu, sem que se veja nada, efetivamente. De uma rua perpendicular, o museu aparece como uma flor de metal, emoldurada pelo casario do início do século XX. Visto do outro lado do rio, é um espetáculo a ser contemplado sem pressa.

No museu do Museu do Séc. XXI acontece o oposto: o exterior curvo e transparente frustra inicialmente a busca de algum espetáculo plástico e nos convida a entrar. O edifício é descrito no seu site, como “uma forma circular que não tem frente nem fundos, deixando-nos livres para explorá-lo em todas as direções”. Em termos: embora hajam três acessos, relacionados com as peculiaridades do terreno, a referência proporcionada pela via mais importante, marca uma entrada principal, que é reforçada pela presença de um hall com balcão de informações e bilheteria, o que acaba por definir frente e fundos, esquerda e direita: certos analistas se esquecem de que a percepção humana é que dá sentido ao que chamamos de “objeto”, relativizando a sua neutralidade.

No entanto, o que acontece de mais notável na experiência do MACXXIC, é o equilíbrio sutil entre disciplina e espontaneidade. Ao percorrer o museu somos sugados pelos corredores que quase sempre terminam numa extremidade aberta para o exterior, lembrando continuamente o mundo e a cidade. Assim, aquela experiência de introspecção, típica dos museus, é substituída por uma sensação de domingo no parque, como se estivéssemos passeando sob uma cobertura. De certo modo, é algo que lembra a grande marquise do Ibirapuera: um interior aberto. Mas ao contrário do vazio paulistano, em Kanazawa o espaço é ocupado por caixas brancas, de tamanhos diversos, cuja disposição às vezes justifica a observação de Toyo Ito sobre a arquitetura de Sejima, ao classificá-la de “diagramatic architecture”. Esse componente é perceptível, porém a pulsação do edifício, com variações de luz, antecipações, revelações e restrições, o deixa num plano secundário. Aliás, a evidência da racionalidade não poderia se ausentar, já que a transparência buscada por Sejima e Nishizawa reflete-se também na intenção de organizar o programa de modo claro. Isto é evidente desde o exterior.


Uma história
Esses dois exemplos, sendo atuais, deveriam ilustrar a desmaterialização da arquitetura, caso essa fosse uma condição de contemporaneidade. Tal fenômeno, que é percebido como a inevitável retirada do tectônico para o segundo plano, seria evidência de um processo histórico com início já na passagem das pirâmides às catedrais góticas, chegando até a transparência da arquitetura moderna e à imaterialidade dos espaços virtuais. O museu de Sejima, por certo é um edifício mais “imaterial” do que o de Bilbao, pelos atributos físicos e plásticos de ambos, o que lançaria então o edifício de Gehry em algum lugar do passado. Mesmo assim, o museu do século XXI, não estaria em melhores condições, pois sua transparência lhe asseguraria no máximo um lugar no século XX.

Quais serão os motivos de dois edifícios tão prestigiados, terem a sua atualidade contestada? Já adianto que tal contestação não é explícita, mas subjacente aos discursos que prescrevem aquelas condições. Para adequar a arquitetura ao Zeitgeist, os arquitetos ditos “investigativos” usam artifícios como a exacerbação do uso da linguagem digital, tanto nas obras quanto na concepção e optam por um pseudo-democratismo, ao abandonar as demandas funcionais em favor da liberdade de apropriação da obra pelo habitante.

Não existe conflito entre liberdade de uso e boas condições funcionais. Lugares são caracterizados por limites e o homem os cria ininterruptamente, seja numa perspectiva histórica, seja no cotidiano, ao construir sua casa ou ao sentar-se num parque. Ashihara os identifica na sutileza da toalha sobre a grama, ou no guarda-chuva aberto sobre os amantes e Semper, ao imaginar a origem têxtil da arquitetura, indica as dificuldades de se relacionar a densidade ao progresso, quando os temas são as vedações. Por outro lado, a ausência de partições sólidas como as paredes, o que favorece a continuidade do espaço e a sutileza na determinação dos lugares, é um fator cultural e pessoal que flutua no tempo: F. L. Wright, nos anos 1930, reconhece essa característica no espaço residencial dos americanos e propõe as usonian houses, onde a cozinha passa a ser o coração da casa, agora revelado. Noutro extremo, num projeto recente, a casa N, de S.Fugimoto, em Tokyo, apresenta a cozinha bem delimitada e separada dos demais espaços, não obstante o projeto se referir exatamente ao estudo e relativização dos limites construídos. Portanto, a integração e a indeterminação não são condições para a liberdade na apropriação dos espaços, e sim alternativas projetuais tão legítimas quando outras: a análise da situação/problema, feita sob o filtro dos interessados e da condução do arquiteto é que indica o caminho.

Os arquitetos são determinantes importantes para as relações entre o habitante e o ambiente construído, seja na condição de intérpretes ou na de propositores, e isto inviabiliza a neutralidade das construções. A idéia de um edifício que nada impõe e é pródigo em se adaptar aos humores cotidianos dos usuários é um velho sonho nutrido, provavelmente, em meio aos ideais de liberdade presentes na primeira metade do século XX, e que eclodem nos anos 60 e 70, numa série de questionamentos e de revisões, atingindo a arquitetura e particularmente o seu ensino. Na Escola de Arquitetura da UFMG, onde estudei, e provavelmente também nas demais escolas do Brasil, o pretenso autoritarismo do arquiteto foi muito criticado e as suas relações com as classes dominantes denunciadas. Quem não se lembra da expressão “arquiteto de madame”? Era tão comum quanto “arquiteto de prancheta”. Ambas se aplicavam tanto aos profissionais que faziam casas para os ricos quanto àqueles concentrados na tarefa de projetar, abstendo-se de engajar no movimento de mudança do mundo, entendido então, como a instauração de um regime de “justiça social”. Os discursos mundo afora, em prol da colocação dos conhecimentos do arquiteto a serviço de uma parcela mais ampla da população, ora corretos ora populistas, misturaram-se em seguida, àqueles que viam as considerações funcionais como fruto de autoritarismo, cerceamento da liberdade do habitante e imposição de hábitos. É nesse caldeirão que a indeterminação dos lugares passa a ser apregoada como saída ética, sendo realizada numa escala urbana em 1983, com o Parc de la Villette, de B. Tschumi. O projeto, cantado em prosa e verso durante quase vinte anos, foi um retumbante fracasso de público, que só entendeu os usos abertos das follies quando, no final dos 90’s, o Mc Donald’s se apropriou de uma delas.

Curiosamente, é do próprio Tschumi a afirmação de que “não há nenhuma arquitetura sem evento e sem programa...”. Embora a palavra “programa” tenha amplos significados, em arquitetura ela se refere ao conjunto de ações a serem desempenhadas nos espaços e que vão influir nas características de cada um deles. Mas hoje se prefere “evento” a “função”. O evento é uma probabilidade, mas também a função só é obrigatória em certas condições: num caixa de banco (exceção feita à CEF), devem ser desempenhadas algumas funções, que não podem ficar ao bel prazer do agente. Nos sanitários das nossas casas podemos fazer o que e quando quisermos, mas em certos momentos o faremos obrigatoriamente. Por outro lado, ninguém come ou deixa de comer só porque passou pela sala de jantar. Ou seja, o cotidiano é composto pela repetição e pela singularidade, e a liberdade de ação é exercida em diversos graus, condicionada até mesmo pelas relações sociais. Essa gradação está presente na arte do dançarino e na do malabarista.


Ground zero
Durante grande parte do século XX, avaliamos a performance dos espaços, prioritariamente pelo seu desempenho funcional, ambiental e construtivo. A partir dos anos 60, a ampliação da consciência acerca de quem habita os espaços que criamos, implicou num maior cuidado sobre as interfaces culturais e psicológicas dos projetos. O significado é fruto da adesão do usuário e sobre ele o arquiteto tem pouco ou nenhum controle, podendo no máximo, e numa hipótese otimista, criar condições para que ocorra. Hoje, numa confusão entre significado e simbolismo, os símbolos digitais substituíram os brasões e tem o mesmo papel de suposta chave de interpretação, embora sejam mais eficazes nas telas do que na realidade construída.

A revolução digital, que permitiria o aprofundamento das investigações sobre a forma e o espaço, se constituiu para muitos, num fim em si mesmo, aprisionando-os num mundo virtual auto referente que assombra o ensino de arquitetura. Assim, sob o pretexto de avançar na direção de uma arquitetura mais inclusiva e estimulante, muitas das propostas “avançadas” estão apenas dando vazão aos crescentes poderes e habilidades de processamento: nesse ambiente de intensa descoberta ferramental, sobra pouco tempo para a invenção arquitetural.

Num ambiente de livre expressão, a experimentação é sempre bem-vinda, pois estimula as práticas correntes. Entretanto quando um grupo pretende deter o privilégio da inovação e da busca, pode acabar prejudicando o desenvolvimento de toda uma profissão. É o que me parece ocorrer com a parcela pretensiosa da vanguarda arquitetônica que se auto-intitula “investigativa”, como se toda atividade do arquiteto não o fosse.

Retirar da inevitabilidade material dos edifícios a sua importância, transferindo-a para sistemas auxiliares que deveriam justamente intensificar as experiências inerentes à fruição dos lugares, não só é pretensão de tornar secundários os objetos, mas também é uma tentativa de transformação do arquiteto num profissional invisível, justamente no momento em que ele redescobre o seu papel civilizador.





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