28 de abr. de 2009

Modernismo tropical. 1

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O Modernismo Conservador e os Cadillacs de Cuba

A GA Houses dedicou a quase totalidade do número 106, de agosto de 2008, à arquitetura brasileira, fato sem dúvida significativo, considerada a sua qualidade incontestável e o seu prestígio mundial. Além das obras, a revista ainda realizou uma longa entrevista com o arquiteto Ângelo Bucci, o qual traçou um panorama da arquitetura brasileira, evidentemente a partir da produção paulistana, o que não desmerece suas colocações, pois, afinal, ela sempre foi a grande referência dos arquitetos brasileiros.

O entrevistador, Yoshio Futagawa, abriu a conversa exaltando a posição única do Brasil, como uma “meca do modernismo”, cujos princípios teriam uma existência continuada entre nós, ao contrário da Europa e dos EUA, onde o pós-modernismo e o deconstrutivismo, teriam causado um rompimento. Bucci concorda que “é possível reconhecer aqui uma espécie de tradição da arquitetura moderna” e se admira por terem os conceitos modernistas sobrevivido a um hiato que teria ocorrido nas décadas de 70 e 80: “como eles puderam superar vinte anos?”, pergunta. Um dos motivos que o arquiteto levanta para essa persistencia é o próprio edifício da FAU/USP, desenhado por Villanova Artigas, cujo papel teria sido fundamental como uma espécie de manifesto vivo, como fonte até mesmo suficiente, de aprendizado.

Tal hipótese é admirável, pois comprova que a arquitetura pode ter a mais alta relevância social mesmo quando não é dirigida aos menos favorecidos. O próprio Niemeyer afirmava isso, quando era questionado por só projetar “palácios”, dizendo que um dia o povo iria usufruir daqueles espaços. Entretanto, o modernismo atual não tem mais as pretensões de beneficiar a sociedade em geral, pretensões que fizeram parte do seu discurso fundador e não abraça mesmo problemas como a habitação popular, que já foi justificativa da racionalização construtiva proposta por ele: a tradição modernista sobrevive sim, mas de um modo que sempre foi negado no seu ideário, ou seja, como um estilo.

Uma rápida verificação mostra que a referida paralisia do pensamento arquitetônico não chegou a dar o tom daqueles vinte anos, já que a produção de muitos arquitetos do período foi primorosa, numa proporção talvez semelhante à que se vê hoje, não obstante a difusão dos conhecimentos ser infinitamente mais ágil, e as facilidades técnicas serem maiores.

Reconhecimento internacional não é atestado de qualidade, mas lembro que em agosto de 1980, uma outra importante revista japonesa, a Process Architecture, dedicara o seu número 17, também à arquitetura brasileira, publicando obras notáveis do João Filgueiras Lima (o... João Filgueiras Lima), como o Centro Administrativo da Bahia e o Hospital Sarah, de Brasília, agencias do Banespa projetadas pelo Ruy Ohtake, dentre as quais a belíssima agencia do Butantã, trabalhos exemplares do escritório de Croce, Aflalo e Gasperini, inclusive o magnífico Edifício Iguatemi, onde, aliás, comprei aquele volume da Process, num representante japonês que tinha escritório no 10º andar. E não ficava nisso, Severiano Porto na Amazônia, Décio Tozzi com o projeto de restauração da Vila do Itororó, Paulo Mendes, Joaquim Guedes... vou percorrendo as páginas do meu amarrotado número e o deleite é intenso: grandes arquitetos, projetos notáveis. Os edifícios construídos nos anos 70 mostram, na verdade, o amadurecimento da linguagem da arquitetura brasileira, não mais restrita à palheta de Niemeyer.

Nos anos 80, o edifício modernista continuava lá, mesmo que trazendo questões novas. O projeto vernacular da Pousada da Ilha de Silves, do Severiano Porto, de 1982, o multicolorido Pavilhão Pindorama de Marcos Acayaba, de 1984 e o SESC Pompéia, da Lina Bo, de 1986, são evidentes sinais da busca de novas expressões, no próprio cerne do modernismo. Se ampliarmos o círculo, Éolo Maia e Sylvio de Podestá estavam em plena atividade, e as suas e outras alternativas à linguagem modernista eram ensaiadas em Minas Gerais. Entretanto, o establishment arquitetônico da época, representado pelos modernistas, não se dispôs a um debate franco com aqueles que contestavam a sua ortodoxia. Esses, é bom que se diga, também estavam pouco preparados para o confronto de idéias, apostando tudo na demonstração dos seus princípios nas obras, preservando uma tradição que é bem brasileira: a crença de que só tem validade a teoria que é exposta na prática. Contudo, não creio ser exagero dizer que os 80’s foram anos de avanço para a arquitetura sim, um avanço limitado pelas condições, mas evidente.

Ângelo Bucci aponta um segundo motivo para a permanência da ideologia modernista entre nós, “depois de uma quebra de vinte anos e sem qualquer ligação com a geração precedente”. O motivo teria sido a decisão de um grupo de escolher os seus próprios precedentes, tendo optado pela arquitetura moderna brasileira, numa posição definida por Bucci como sendo “mais de resistência, do que de preservação”. Creio que a preservação pode ocorrer até mesmo num contexto de mudanças, num processo que envolve negociação, mas até que ponto uma posição de resistência não terá se constituído em entrave para o desenvolvimento da arquitetura brasileira? Quando um grupo revestido de autoridade por sua excelência histórica e dotado de meios poderosos de divulgação das suas idéias como são os paulistas, se coloca como resistência, é preciso que esclareça a que está resistindo para não ficar na posição de quem apenas se apega dogmaticamente a uma tradição.

É inevitável relacionar a pretensa retomada modernista, ao início da década de 90. Mais precisamente, podemos situá-la no concurso para o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Sevilha, concurso que, tendo no júri a presença de Paulo Mendes da Rocha, foi vencido pela equipe de Bucci, Puntoni e Vilela, com um edifício nos moldes da arquitetura brutalista que se fazia, ou se sonhava fazer, em São Paulo. Em segundo lugar, e preferido por Paulo Mendes segundo alguns, ficou o projeto do mineiro Paulo Laender. Laender propunha uma forma mais livre, bastante relacionada com a sua linguagem de escultor e, nessa aproximação com a arte, ilumina posturas importantes que estavam sendo nutridas e que vão dominar a cena mundial a partir dos anos 90. Embora discreto, esse momento pode ser considerado um divisor de águas, no qual a ampliação das possibilidades expressivas foi confrontada por um Modernismo Conservador, impermeável aos questionamentos pós-modernos.

Embora o Pavilhão de Sevilha não tenha sido construído, por falta de verbas e de responsabilidade, a retomada modernista implícita no resultado, de certo modo calou o debate que se tentava engatar a duras penas, acerca das linguagens da arquitetura restabelecendo o Modernismo como paixão nacional dos arquitetos brasileiros.

Nos anos 90, e não nos 70 e 80, não pela ditadura ou pela crise econômica, mas por uma espécie de unanimidade falsificada, a arquitetura brasileira silencia. Por um lado, não conseguimos bancar as experimentações formais e urbanísticas, levadas a cabo em várias partes do mundo, do México ao Japão. Por outro lado, a retomada do heroísmo estrutural que caracterizou a arquitetura brasileira pós Brasília, apresentado agora como parte fundamental da tradição moderna, traz para o ambiente de ensino mensagens confusas, não se constituindo em alternativa sustentável, às placas de titânio.

Fechadas nas suas referências, mesmo que notáveis, as obras do Modernismo Conservador tem um ar de patrimônio histórico tardiamente construído. De certo modo são como os velhos e admirados cadillacs que circulam nas ruas de Havana. Esses, entretanto, são autenticamente velhos.





















ilustrações
1. Estudo para o Pavilhão de Sevilha. Bucci, Puntoni e Vilela. 1991
2. Casa do Arquiteto. Severiano Porto. 1971
3. Edifício Iguatemi, Croce, Aflalo e Gasperini. 1973
4. Agência Banespa Butantã. Ruy Ohtake. 1976
5. Hospital Sarah Brasilia. João Filgueiras Lima. 1976

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