28 de mar. de 2010

Um exercício de metacritica ou, três momentos de Serapião 2

Duas Casas
Por uma coincidência, no mesmo ano de 2009, um outro paulista, Ângelo Bucci, construiu uma grande casa num contexto também espetacular, em Santa Tereza, no Rio de Janeiro. Ressalto o fato de Bucci e Kogan serem paulistas para mostrar que não existe necessariamente um bairrismo por trás da preferência de Serapião por alguns arquitetos e sim a predominância de uma ideologia.
A residência de Bucci foi projetada há três anos atrás, em 2006, e a Projeto publicou na época, reportagem com a sua maquete. Logo que ficou pronta, em maio de 2009, (ainda sem o paisagismo acabado) a casa foi publicada na revista. A casa de Kogan em Paraty ficou pronta no mesmo mês de maio de 2009, mas só foi publicada em outubro, um mês após ter sido premiada no Leaf Awards 2009, uma premiação internacional de arquitetura.

São apenas detalhes, mas não são insignificantes, como mostram as análises que acompanham a publicação das casas de Bucci e Kogan, ambas elaboradas por Fernando Serapião, que escreve um texto muito peculiar sobre essa casa tão especial, que é a de Paraty, uma das melhores casas construidas no Brasil nas últimas décadas.
Nesse texto surge uma personagem pouco freqüente na cena arquitetônica: o arquiteto e professor Aurélio Martinez Flores. Flores foi pouquíssimo publicado, não obstante sua longa trajetória, e nenhuma das suas casas aparece nas páginas das duas principais revistas brasileiras. Entretanto, segundo a análise de Serapião sobre a casa em Paraty, ela seria quase uma conseqüência da obra e do pensamento desse mexicano que adotou São Paulo.
Martinez Flores parece ter um trabalho realmente de interesse e livre dos dogmas modernistas, mas daí a dizer que o uso de generosas aberturas horizontais foi “eternizado” por ele, no Instituto Moreira Salles em Poços de Caldas, MG, é ser pouco fiel à história da arquitetura.
Os outros atributos da obra de Flores, que segundo Serapião, tem o trabalho “(...) marcado pelas caixas de alvenaria branca e massa raspada, pelo apuro no detalhamento minimalista e pelos espaços internos baseados em percursos e surpresas”, mesmo que tenham influenciado o seu ex-aluno, não podem ser considerados atributos originais e exclusivos, a ponto de definirem uma linhagem. São inúmeros os arquitetos que trabalham com esses critérios e, se resolvermos dar um exemplo bem distante, toda arquitetura egípcia do Quarto Império se enquadra aí.

Diferentemente da sua análise da casa de Bucci em Santa Tereza, na casa de Paraty, Serapião concentra-se no aspecto compositivo do projeto, o que me parece um equívoco. Já que o contexto da mata atlântica é a razão de ser da proposta de Kogan, a implantação deveria ser o tópico dominante, mas sequer é citada. Na casa de Santa Tereza é diferente: ali, mesmo que tenham havido considerações acerca da topografia e do entorno, procedimento recorrente em qualquer projeto, eles servem de suporte para a implantação de um modelo, não sendo inspiradores de uma concepção própria para o lugar.
Isso fica mais ou menos claro em certos enquadramentos: o Pão de Açúcar é maltratado duas vezes, sendo a primeira na sala, onde é coroado pelos trilhos dos vidros de correr. A segunda é na cozinha, onde divide a cena com uma coifa. Essa vista, a principal, também fica prejudicada pelo primeiro plano, constituído por uma vizinhança construída e invasiva, habilmente omitida das fotos. O esquematismo da proposta, na qual dois lados são empenas e dois lados abertos, impede a solução desse problema, não porque prejudicasse a pureza da concepção, mas porque o problema não foi detectado: um dos equívocos modernistas é a crença de que o edifício vai submeter o contexto.



Serapião vê outra coisa: “No caso de Bucci, a natureza é a paisagem e a casa, inserida em contexto urbano rico e centenário, é a mais importante contribuição recente ao local, onde se soma às dezenas de construções históricas que permeiam o tecido do bairro.” Não é o que mostram as fotos. A casa, na paisagem é uma composição que não condiz com a sua condição de ápice, de cume da montanha: ela não se decide entre a tomada de posse e a submissão à natureza. Curiosamente os volumes repetem a conformação do volume vizinho verde, abaixo dela, o que poderia indicar a intenção de mimetizar, embora isso não fizesse sentido algum. A empena cega é agressiva e não se impõe como elemento escultórico, constituindo-se em mero resultado construtivo, decorrente de um modelo.

Mas Serapião não discute muito a composição da casa de Santa Tereza, exceto pelos traços mais óbvios da sua configuração. Na verdade ele também fala pouco da casa de Paraty, descrevendo espaços e soluções de modo bastante superficial . Leiam os títulos das fotos e vocês perceberão o tom burocrático: “Amplos caixilhos integram estar e jantar ao exterior. A passarela sobre o espelho d’água marca o acesso. O pátio ilumina a cozinha. A varanda é continuidade da área fechada de estar”.
A varanda é continuidade da área fechada de estar? Ora, deve haver algo mais a ser dito.

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